A DEMOCRACIA NÃO É COMPATÍVEL COM A TEORIA DE BODE EXPIATÓRIO
Discursso de Adelino Amaro da Costa no parlamento a 7 de Janeiro de 1976, vejam se encontram semelhanças com os nossos dias...
- Sr. Presidente, Srs. Deputados:
Sem pretender dar um mote a esta sessão, também começarei dizendo que retomamos a nossa actividade na Assembleia Constituinte neste ano de 1976 sob o signo (e aqui o mote pode não ser o mesmo) das sombras que se desenham sobre a vida dos Portugueses, mas também com a esperança que nos anima quanto ao futuro da democracia em Portugal.
São, na verdade, muitas as sombras que se projectam no nosso futuro. Muitas delas relacionam-se directamente, e cada vez mais, com a situação económica.
Não tenhamos ilusões: o problema económico português continua a ser, e sobretudo, um problema político.
Desde logo, uma primeira e importante questão interessa colocar: como pode haver recuperação económica sem a necessária estabilidade e coerência governamental.
Arrastaram-se, infindavelmente, as negociações para os acertos na composição do Governo. Que enorme prova de incapacidade foi dada, perante toda a opinião pública, pelos homens e os partidos que tiveram responsabilidades nos sucessivos atrasos desse processo essencial que mais cedo devia ter conduzido à formação completa do Governo!
Vale ao Governo que os mecanismos da democracia ainda não estão totalmente implantados em Portugal. Vale ao Governo o facto de que a oposição é, apesar de tudo, moderada, paciente e compreensiva. Porque em nenhum país democrático se toleraria, com a tolerância que nós - Portugueses e Oposição - manifestamos, o tempo e as energias imensas que foram despendidas na formação final do Governo.
As consequências que daí resultam não são para menosprezar. Como pode o povo português confiar na competência do Governo para resolver os gravíssimos problemas económicos e sociais que enfrentamos, se ele tão pouco capaz se mostrou de resolver os seus próprios problemas internos?
Problemas internos que começaram por manifestar-se no plano de uma ligeira recomposição ministerial, mas que logo se ampliaram e agravaram com tomadas de posição unilaterais por parte de partidos que estão no Governo.
Como pode ser pedido ao povo português que responsavelmente adira a um chamado plano de austeridade, se, em matéria tão fundamental e de tantas implicações, logo um partido que faz parte do Governo se apressa a declarar que se absteve na votação sobre o mesmo? Onde está o princípio da solidariedade governamental? Com que sentido de responsabilidade permanece esse partido no Governo quando começa por desautorizar o próprio Conselho de Ministros naquilo que de mais grave esse Conselho decidiu ao longo de três meses?
Como podem ser pedidos sacrifícios tão evidentes às classes trabalhadoras se um outro partido do Governo, que tão insistentemente se reclama do seu apoio e da sua representação, passa o tempo a afirmar a sua escassa responsabilidade naquilo que o Governo vai decidindo? Onde está o princípio da solidariedade governamental? Porque se mantém esse partido no Governo? Afinal, o Governo é quem?
Sejamos claros e enfrentemos a realidade. Está o Partido Socialista disposto a ter sozinho as responsabilidades do Governo - isto é, as suas cargas - , deixando aos parceiros o cuidado de se desmarcarem dessas mesmas responsabilidades? Que diz a isto o Primeiro-Ministro? Que dizemos disto todos nós, Portugueses?
E não pensemos que esta é a crítica fácil e cómoda de quem está na oposição. É-o, necessariamente, mas é também a expressão de uma séria inquietação. Durante muito tempo o VI Governo bateu-se pelo respeito da autoridade; o VI Governo e o seu Primeiro-Ministro reivindicaram, por formas diversas e utilizando até meios drásticos, a garantia do apoio militar para poderem governar. O golpe, felizmente frustrado, do 25 de Novembro veio permitir a criação de condições mínimas para que o projecto democrático pudesse sobreviver e para que o Governo, afinal, governasse.
Quando dois partidos do Governo reclamavam respeito da autoridade democrática, o CDS deu-lhes nisso algum apoio e não pouca solidariedade. Isso verificou-se antes do 25 de Novembro.
E que temos agora? É o próprio Governo que, ao dar mostras de falta de coesão, se desautoriza. É uma situação que não interessa a ninguém - e digo-o com sinceridade -, nem sequer à oposição que o CDS é. O Primeiro-Ministro não pode consentir que um qualquer membro do Governo venha a público dizer que votou desta ou daquela maneira sobre determinada matéria. O que se dá em qualquer democracia estabilizada, quando tal acontece, é a imediata demissão desse Ministro.
Estes sinais de desmarcação interna ou de desresponsabilidade, como hoje ainda aqui assistimos, de partidos que estão representados no Governo são, porém, mais graves pelos reflexos que podem ter. Na verdade, que resulta de situações como esta?
Mais do que nunca tememos o descrédito que ela possa supor para a própria existência dos partidos; mais do que nunca tememos a exploração demagógica da incoerência e da própria falta de autoridade interna do Governo, no que ela pode significar de desprestígio da própria democracia.
Por outro lado, e neste quadro, é fácil compreender que o Governo não tenha sido capaz de formular, em concreto, uma política económica. Porque se o Governo tem uma política económica, nós não sabemos qual seja. Acreditamos que cada um dos partidos representados no Governo tenha as suas próprias ideias sob o modo de travagem da regressão da economia em Portugal. Mas, postos em conjunto, à mesa das decisões, que resulta?
Até agora apenas assistimos à publicação de umas chamadas medidas de austeridade e umas normas de actuação do sistema de crédito. Que novos projectos vão ser lançados? Que iniciativas concretas vão ser desenvolvidas, apoiadas, estimuladas? Pensará o Governo que o problema mais importante da economia é o dos deficits do Orçamento Geral do Estado, do Fundo de Abastecimentos e de outros fundos autónomos?
Julgará o Governo que os deficits orçamentais são ainda em Portugal uma causa importante da regressão económica e da inflação? Não se apercebe o Governo que é, a todos os títulos, errado atacar os efeitos sem ir em busca dos remédios capazes de remediarem as causas dos nossos males? Ou estará o Governo ainda convencido de que a busca do equilíbrio orçamental é o primeiro instrumento a utilizar no combate à inflação, na diminuição do desemprego, no relançamento da produção? Por outro lado, o Governo está a favorecer a restrição ao consumo, e ao fazê-lo desencadeia propositadamente uma política que, mais cedo ou mais tarde, e a menos uma feroz contenção salarial, acabará por ser altamente inflacionista, com todos os sacrifícios que isso comporta para reformados, pensionistas e outras classes de rendimentos fixos ou de escassa elasticidade, assim como para as próprias classes trabalhadoras mais desfavorecidas, para já não falar das centenas de milhar de desempregados.
Entretanto, porque não procede o Governo a uma política prioritária de estímulo à produção de bens e de correlativo aumento de oferta? Só uma política deliberada de estímulo à produção e ao investimento poderia ajudar a reduzir o desemprego e a refrear a inevitável explosão inflacionista que vamos sofrer.
O que não se compreende é que o Governo tenha começado justamente por aquilo que é mais difícil de aceitar, por razões económicas e psicológicas, pela opinião pública: a publicação prévia daquilo a que chama medidas de austeridade as quais, em primeira análise, são, afinal, adoptadas como forma indiscriminada e tanto quanto possível maciça de aumento das receitas públicas.
Aceitamos que o povo português está convencido de que seria um grave risco deixar ir mais longe os erros da política demagógica, durante tanto tempo praticada. Mas como poderá o povo português aceitar o aumento dos preços de bens de consumo normal, sem vislumbrar uma medida positiva, uma medida imaginativa que dê sentido e significado aos sacrifícios, puramente negativos, que tem de suportar?
O povo português, pela informação que lhe tem chegado, conhece os traços fundamentais do que durante muito tempo não foi, e continua a não ser, uma política económica: o pedido de auxílio ao estrangeiro; o aumento indiscriminado de salários até um certo ponto e o congelamento de salários a partir daí; a prática "messiânica" das nacionalizações e das intervenções do Estado; o aumento sistemático da circulação monetária; a desorganização das estruturas administrativas e de produção. Perante este panorama, mais ou menos inalterado durante largo tempo, ganha-se a consciência crescente de que o País está afinal a financiar a inércia e, por justas razões sociais e morais, o desemprego. As injecções maciças de dinheiro nas empresas através do sistema de crédito e de aumento da circulação monetária que efeito têm no relançamento da economia e na criação de novos postos de trabalho?
As empresas que continuam a funcionar produzem para quem e o quê?
Os riscos desta política estão à vista.
Enquanto a inflação não faz reintroduzir no circuito monetário parte substancial do dinheiro retido pela poupança privada, as famílias dispõem, em casos que não serão pouco numerosos, de pequenos fundos de maneio que, em qualquer momento podem invadir, de forma súbita o mercado de consumo corrente. Se tal acontecer, a consequência está à vista: será o esgotamento imediato da grande maioria dos bens ainda susceptíveis de aquisição, será o leite, a carne, a manteiga e outros produtos que definitivamente escassearão. Estes riscos serão ainda mais graves se a especulação e o açambarcamento diminuírem ainda mais, como parece estar a acontecer, a escassa elasticidade do circuito de abastecimento.
Temos todos consciência de que o fenómeno da rápida invasão de uma enorme massa monetária no mercado corrente pode dar-se por puras razões psicológicas. Qualquer chispa pode, de repente, atear uma enorme fogueira.
O facto de o Governo continuar a não ser capaz de formular uma coerente política económica pode ser essa chispa; como o podem ser convulsões de rua de tipo daquelas que, no começo de Janeiro ensombraram com mortes dias tradicionalmente marcados pela consciência da paz e à esperança.
Do mesmo modo, a continuarem os apetites daqueles que parecem preferir a clandestinidade no fascismo, à luta aberta de oposição legal na democracia; a continuarem as manipulações de massas, com a ajuda de estrangeiros, podem rapidamente criar-se condições para graves dramas na vida colectiva dos portugueses.
Sabemos bem quem se poderá aproveitar dessa situação se ela vier a ocorrer. Serão aqueles à direita ou à esquerda que não querem as liberdades democráticas.
É bom que a esquerda democrática não se iluda. É bom que a esquerda no Governo saiba que só há uma possibilidade de salvar a democracia: governar com coerência, coesão e competência; respeitar, e valorizar a oposição, como é próprio da democracia.
É nossa convicção que o deslizamento do País para a ditadura - e a de direita volta a ser hoje mais provável do que a de esquerda - só poderá ser travado se o Governo for capaz de assegurar aquelas condições. E é também nossa convicção de que a salvaguarda da democracia exige, mais do que nunca, aquilo a que chamamos a "centrização" dos sectores sociais potencialmente mobilizáveis pela direita.
A centrização da vida política em Portugal não se fará, porém, através do "antipêcêpismo". Até quando, o antipêcêpismo será trunfo partidário capaz de calar a justa e indignada voz dos portugueses que, cada dia, vivem com menos esperança, com mais dúvidas?
Decerto que não vai ser fácil que nos esqueçamos daquilo que pensamos serem as graves responsabilidades morais e políticas do "pêcêpismo" e do "gonçalvismo". Decerto que continuamos a não compreender que algumas forças políticas tenham desejado manter a colaboração com este PCP, quando este se recusou a cumprir um mínimo de condições políticas e morais para que tal pudesse acontecer. Mas não poderão as forças democráticas continuar indefinidamente a invocar o "pêcêpismo" ou o "gonçalvismo" para explicar tudo, como não era possível ao gonçalvismo evocar permanentemente a "herança fascista" para explicar ó desastre da sua política.
Amanhã, quem será o bode expiatório? A democracia não é compatível com a teoria de bode expiatório ou com a agitação permanente de fantasmas. Quando as dificuldades se tornam próximas e os dramas se vivem intensamente em cada família portuguesa, não tem importância alguma, do ponto de vista da opinião pública, que se invoquem os fantasmas e os perigos que eles comportam. Porque, por maiores que tenham sido as transformações estruturais da economia e da sociedade portuguesa, o povo português não tolera alterações aos seus padrões de consumo - mesmo baixos como, na média, eram - para além de certos limites. O monstro que é a insegurança familiar não se exorciza com fantasmas. Elimina-se com uma correcta prática política. É nessa prática que todas as forças políticas responsáveis se têm de empenhar. Pelo nosso lado, estamos crentes de ter dado prova, em múltiplas ocasiões, de estarmos conscientes das nossas obrigações perante o País. Não será por nós que se criarão as condições de instabilidade favoráveis, a novos golpismos pseudo-redentores, ainda que de outra cor. E talvez a história venha a reconhecer que foi também graças aos democratas centristas, da sua recusa em embarcarem no jogo oportunista do eleitoralismo mais primário, que a democracia teve condições para se salvar em Portugal. Estamos dispostos a honrar esta missão, na pedagogia política que nos cabe como partido de oposição, profunda e inequivocamente empenhado na democracia social avançada que desejamos ver construída. Oxalá outros, que se reclamam de posições à nossa esquerda, e que estão no Governo, também assim o saibam entender, pela coerência das suas posições, pela clareza das suas atitudes. De outro modo, a convulsão social atingirá tais dimensões que os riscos corridos pelo projecto democrático serão incalculáveis.
Pelo nosso lado, estamos dispostos, sem abdicar dos nossos direitos dó oposição que continuamos a reivindicar, a participar no diálogo necessário para a sobrevivência e consolidação da democracia.
Mas o Governo e as restantes forças políticas têm de compreender com rapidez uma política que, definitivamente, conduza ao desbloqueamento, psicológico das tensões que se estão a acumular em torno da nossa vida colectiva. Não basta que o Conselho da Revolução se preocupe com a especulação em torno da alta. do custo de vida. Essa especulação só pode cessar se ao aumento do custo de vida forem dadas as respostas económicas, políticas e psicológicas necessárias.
Os aspectos psicológicos e sociais do actual processo político não podem, na verdade, ser menosprezados. E isso leva-nos a considerar uma outra importante dimensão. Na verdade, mais do que nunca interessa sublinhar o papel fundamental que cabe ao quarto poder do Estado, a esse poder inorgânico que é constituído pelos órgãos de comunicação social.
Nesta Assembleia, em múltiplas ocasiões, se ouviram ataques muito firmes - e em vários casos justos - sobre certos órgãos de informação. Hoje, cabe elogiar tantos jornalistas portugueses que, apesar de tudo, souberam demonstrar que são bem capazes de fazer jornalismo independente e que, dia a dia, o estão provando pelo seu trabalho e pelo seu comportamento.
Trabalho que muitos deles continuam a exercer em órgãos ditos estatizados. Pessoalmente devo dizer que tenho as mais sérias reservas sobre o princípio da existência de jornais dependentes do Governo. Julgo que haveria soluções capazes de melhor salvaguardar a independência das redacções jornalísticas e o próprio erário público do que aquela que foi adoptada. Ficará para outra altura o desenvolvimento desta tese. Para já, interessa sublinhar a enorme importância dos jornais e, em geral, dos meios de comunicação na consolidação dos espaços de liberdade que uma respiração saudável do espírito democrático do País inequivocamente exige. A sua serenidade, a sua competência, a sua inteligência, a sua objectividade, a sua recusa ao ódio e à intolerância, são factores fundamentais para o reencontro das condições que permitam a sobrevivência da democracia.
A televisão, de modo particular, tem de contribuir para este esforço. Nela convergem as maiores potencialidades de concurso para o desbloqueamento psicológico das actuais tensões sócio-políticas. A televisão deverá ser o espelho da realidade social: e se o conseguir, terá contribuído, da forma mais útil, para que o País não caia na desilusão ou na convicção de que está a ser enganado ou de que não há alternativa democrática possível. A televisão tem de ser um espaço de encontro e de confronto. Os principais dirigentes políticos têm de apresentar-se, em debate directo, perante o público, analisando a situação do Pais, confrontando as soluções, discutindo as suas perspectivas mútuas.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Concluo: na política económica, na clarividência dos partidos políticos mais responsáveis, na prática do sistema de informação, joga-se o futuro de Portugal.
Comecei por dizer que iniciávamos este ano com perspectivas sombrias. Julgo, porém, que a nossa esperança na democracia, na reconstrução e na reconciliação, tem sérias razões para sobreviver.
Acredito na capacidade do povo português para construir em Portugal a democracia.
Apesar de tudo e contra muitos.
Muito obrigado.
Adelino Amaro da Costa, CDS na Oposição, Lisboa, CDS, 1976
- Sr. Presidente, Srs. Deputados:
Sem pretender dar um mote a esta sessão, também começarei dizendo que retomamos a nossa actividade na Assembleia Constituinte neste ano de 1976 sob o signo (e aqui o mote pode não ser o mesmo) das sombras que se desenham sobre a vida dos Portugueses, mas também com a esperança que nos anima quanto ao futuro da democracia em Portugal.
São, na verdade, muitas as sombras que se projectam no nosso futuro. Muitas delas relacionam-se directamente, e cada vez mais, com a situação económica.
Não tenhamos ilusões: o problema económico português continua a ser, e sobretudo, um problema político.
Desde logo, uma primeira e importante questão interessa colocar: como pode haver recuperação económica sem a necessária estabilidade e coerência governamental.
Arrastaram-se, infindavelmente, as negociações para os acertos na composição do Governo. Que enorme prova de incapacidade foi dada, perante toda a opinião pública, pelos homens e os partidos que tiveram responsabilidades nos sucessivos atrasos desse processo essencial que mais cedo devia ter conduzido à formação completa do Governo!
Vale ao Governo que os mecanismos da democracia ainda não estão totalmente implantados em Portugal. Vale ao Governo o facto de que a oposição é, apesar de tudo, moderada, paciente e compreensiva. Porque em nenhum país democrático se toleraria, com a tolerância que nós - Portugueses e Oposição - manifestamos, o tempo e as energias imensas que foram despendidas na formação final do Governo.
As consequências que daí resultam não são para menosprezar. Como pode o povo português confiar na competência do Governo para resolver os gravíssimos problemas económicos e sociais que enfrentamos, se ele tão pouco capaz se mostrou de resolver os seus próprios problemas internos?
Problemas internos que começaram por manifestar-se no plano de uma ligeira recomposição ministerial, mas que logo se ampliaram e agravaram com tomadas de posição unilaterais por parte de partidos que estão no Governo.
Como pode ser pedido ao povo português que responsavelmente adira a um chamado plano de austeridade, se, em matéria tão fundamental e de tantas implicações, logo um partido que faz parte do Governo se apressa a declarar que se absteve na votação sobre o mesmo? Onde está o princípio da solidariedade governamental? Com que sentido de responsabilidade permanece esse partido no Governo quando começa por desautorizar o próprio Conselho de Ministros naquilo que de mais grave esse Conselho decidiu ao longo de três meses?
Como podem ser pedidos sacrifícios tão evidentes às classes trabalhadoras se um outro partido do Governo, que tão insistentemente se reclama do seu apoio e da sua representação, passa o tempo a afirmar a sua escassa responsabilidade naquilo que o Governo vai decidindo? Onde está o princípio da solidariedade governamental? Porque se mantém esse partido no Governo? Afinal, o Governo é quem?
Sejamos claros e enfrentemos a realidade. Está o Partido Socialista disposto a ter sozinho as responsabilidades do Governo - isto é, as suas cargas - , deixando aos parceiros o cuidado de se desmarcarem dessas mesmas responsabilidades? Que diz a isto o Primeiro-Ministro? Que dizemos disto todos nós, Portugueses?
E não pensemos que esta é a crítica fácil e cómoda de quem está na oposição. É-o, necessariamente, mas é também a expressão de uma séria inquietação. Durante muito tempo o VI Governo bateu-se pelo respeito da autoridade; o VI Governo e o seu Primeiro-Ministro reivindicaram, por formas diversas e utilizando até meios drásticos, a garantia do apoio militar para poderem governar. O golpe, felizmente frustrado, do 25 de Novembro veio permitir a criação de condições mínimas para que o projecto democrático pudesse sobreviver e para que o Governo, afinal, governasse.
Quando dois partidos do Governo reclamavam respeito da autoridade democrática, o CDS deu-lhes nisso algum apoio e não pouca solidariedade. Isso verificou-se antes do 25 de Novembro.
E que temos agora? É o próprio Governo que, ao dar mostras de falta de coesão, se desautoriza. É uma situação que não interessa a ninguém - e digo-o com sinceridade -, nem sequer à oposição que o CDS é. O Primeiro-Ministro não pode consentir que um qualquer membro do Governo venha a público dizer que votou desta ou daquela maneira sobre determinada matéria. O que se dá em qualquer democracia estabilizada, quando tal acontece, é a imediata demissão desse Ministro.
Estes sinais de desmarcação interna ou de desresponsabilidade, como hoje ainda aqui assistimos, de partidos que estão representados no Governo são, porém, mais graves pelos reflexos que podem ter. Na verdade, que resulta de situações como esta?
Mais do que nunca tememos o descrédito que ela possa supor para a própria existência dos partidos; mais do que nunca tememos a exploração demagógica da incoerência e da própria falta de autoridade interna do Governo, no que ela pode significar de desprestígio da própria democracia.
Por outro lado, e neste quadro, é fácil compreender que o Governo não tenha sido capaz de formular, em concreto, uma política económica. Porque se o Governo tem uma política económica, nós não sabemos qual seja. Acreditamos que cada um dos partidos representados no Governo tenha as suas próprias ideias sob o modo de travagem da regressão da economia em Portugal. Mas, postos em conjunto, à mesa das decisões, que resulta?
Até agora apenas assistimos à publicação de umas chamadas medidas de austeridade e umas normas de actuação do sistema de crédito. Que novos projectos vão ser lançados? Que iniciativas concretas vão ser desenvolvidas, apoiadas, estimuladas? Pensará o Governo que o problema mais importante da economia é o dos deficits do Orçamento Geral do Estado, do Fundo de Abastecimentos e de outros fundos autónomos?
Julgará o Governo que os deficits orçamentais são ainda em Portugal uma causa importante da regressão económica e da inflação? Não se apercebe o Governo que é, a todos os títulos, errado atacar os efeitos sem ir em busca dos remédios capazes de remediarem as causas dos nossos males? Ou estará o Governo ainda convencido de que a busca do equilíbrio orçamental é o primeiro instrumento a utilizar no combate à inflação, na diminuição do desemprego, no relançamento da produção? Por outro lado, o Governo está a favorecer a restrição ao consumo, e ao fazê-lo desencadeia propositadamente uma política que, mais cedo ou mais tarde, e a menos uma feroz contenção salarial, acabará por ser altamente inflacionista, com todos os sacrifícios que isso comporta para reformados, pensionistas e outras classes de rendimentos fixos ou de escassa elasticidade, assim como para as próprias classes trabalhadoras mais desfavorecidas, para já não falar das centenas de milhar de desempregados.
Entretanto, porque não procede o Governo a uma política prioritária de estímulo à produção de bens e de correlativo aumento de oferta? Só uma política deliberada de estímulo à produção e ao investimento poderia ajudar a reduzir o desemprego e a refrear a inevitável explosão inflacionista que vamos sofrer.
O que não se compreende é que o Governo tenha começado justamente por aquilo que é mais difícil de aceitar, por razões económicas e psicológicas, pela opinião pública: a publicação prévia daquilo a que chama medidas de austeridade as quais, em primeira análise, são, afinal, adoptadas como forma indiscriminada e tanto quanto possível maciça de aumento das receitas públicas.
Aceitamos que o povo português está convencido de que seria um grave risco deixar ir mais longe os erros da política demagógica, durante tanto tempo praticada. Mas como poderá o povo português aceitar o aumento dos preços de bens de consumo normal, sem vislumbrar uma medida positiva, uma medida imaginativa que dê sentido e significado aos sacrifícios, puramente negativos, que tem de suportar?
O povo português, pela informação que lhe tem chegado, conhece os traços fundamentais do que durante muito tempo não foi, e continua a não ser, uma política económica: o pedido de auxílio ao estrangeiro; o aumento indiscriminado de salários até um certo ponto e o congelamento de salários a partir daí; a prática "messiânica" das nacionalizações e das intervenções do Estado; o aumento sistemático da circulação monetária; a desorganização das estruturas administrativas e de produção. Perante este panorama, mais ou menos inalterado durante largo tempo, ganha-se a consciência crescente de que o País está afinal a financiar a inércia e, por justas razões sociais e morais, o desemprego. As injecções maciças de dinheiro nas empresas através do sistema de crédito e de aumento da circulação monetária que efeito têm no relançamento da economia e na criação de novos postos de trabalho?
As empresas que continuam a funcionar produzem para quem e o quê?
Os riscos desta política estão à vista.
Enquanto a inflação não faz reintroduzir no circuito monetário parte substancial do dinheiro retido pela poupança privada, as famílias dispõem, em casos que não serão pouco numerosos, de pequenos fundos de maneio que, em qualquer momento podem invadir, de forma súbita o mercado de consumo corrente. Se tal acontecer, a consequência está à vista: será o esgotamento imediato da grande maioria dos bens ainda susceptíveis de aquisição, será o leite, a carne, a manteiga e outros produtos que definitivamente escassearão. Estes riscos serão ainda mais graves se a especulação e o açambarcamento diminuírem ainda mais, como parece estar a acontecer, a escassa elasticidade do circuito de abastecimento.
Temos todos consciência de que o fenómeno da rápida invasão de uma enorme massa monetária no mercado corrente pode dar-se por puras razões psicológicas. Qualquer chispa pode, de repente, atear uma enorme fogueira.
O facto de o Governo continuar a não ser capaz de formular uma coerente política económica pode ser essa chispa; como o podem ser convulsões de rua de tipo daquelas que, no começo de Janeiro ensombraram com mortes dias tradicionalmente marcados pela consciência da paz e à esperança.
Do mesmo modo, a continuarem os apetites daqueles que parecem preferir a clandestinidade no fascismo, à luta aberta de oposição legal na democracia; a continuarem as manipulações de massas, com a ajuda de estrangeiros, podem rapidamente criar-se condições para graves dramas na vida colectiva dos portugueses.
Sabemos bem quem se poderá aproveitar dessa situação se ela vier a ocorrer. Serão aqueles à direita ou à esquerda que não querem as liberdades democráticas.
É bom que a esquerda democrática não se iluda. É bom que a esquerda no Governo saiba que só há uma possibilidade de salvar a democracia: governar com coerência, coesão e competência; respeitar, e valorizar a oposição, como é próprio da democracia.
É nossa convicção que o deslizamento do País para a ditadura - e a de direita volta a ser hoje mais provável do que a de esquerda - só poderá ser travado se o Governo for capaz de assegurar aquelas condições. E é também nossa convicção de que a salvaguarda da democracia exige, mais do que nunca, aquilo a que chamamos a "centrização" dos sectores sociais potencialmente mobilizáveis pela direita.
A centrização da vida política em Portugal não se fará, porém, através do "antipêcêpismo". Até quando, o antipêcêpismo será trunfo partidário capaz de calar a justa e indignada voz dos portugueses que, cada dia, vivem com menos esperança, com mais dúvidas?
Decerto que não vai ser fácil que nos esqueçamos daquilo que pensamos serem as graves responsabilidades morais e políticas do "pêcêpismo" e do "gonçalvismo". Decerto que continuamos a não compreender que algumas forças políticas tenham desejado manter a colaboração com este PCP, quando este se recusou a cumprir um mínimo de condições políticas e morais para que tal pudesse acontecer. Mas não poderão as forças democráticas continuar indefinidamente a invocar o "pêcêpismo" ou o "gonçalvismo" para explicar tudo, como não era possível ao gonçalvismo evocar permanentemente a "herança fascista" para explicar ó desastre da sua política.
Amanhã, quem será o bode expiatório? A democracia não é compatível com a teoria de bode expiatório ou com a agitação permanente de fantasmas. Quando as dificuldades se tornam próximas e os dramas se vivem intensamente em cada família portuguesa, não tem importância alguma, do ponto de vista da opinião pública, que se invoquem os fantasmas e os perigos que eles comportam. Porque, por maiores que tenham sido as transformações estruturais da economia e da sociedade portuguesa, o povo português não tolera alterações aos seus padrões de consumo - mesmo baixos como, na média, eram - para além de certos limites. O monstro que é a insegurança familiar não se exorciza com fantasmas. Elimina-se com uma correcta prática política. É nessa prática que todas as forças políticas responsáveis se têm de empenhar. Pelo nosso lado, estamos crentes de ter dado prova, em múltiplas ocasiões, de estarmos conscientes das nossas obrigações perante o País. Não será por nós que se criarão as condições de instabilidade favoráveis, a novos golpismos pseudo-redentores, ainda que de outra cor. E talvez a história venha a reconhecer que foi também graças aos democratas centristas, da sua recusa em embarcarem no jogo oportunista do eleitoralismo mais primário, que a democracia teve condições para se salvar em Portugal. Estamos dispostos a honrar esta missão, na pedagogia política que nos cabe como partido de oposição, profunda e inequivocamente empenhado na democracia social avançada que desejamos ver construída. Oxalá outros, que se reclamam de posições à nossa esquerda, e que estão no Governo, também assim o saibam entender, pela coerência das suas posições, pela clareza das suas atitudes. De outro modo, a convulsão social atingirá tais dimensões que os riscos corridos pelo projecto democrático serão incalculáveis.
Pelo nosso lado, estamos dispostos, sem abdicar dos nossos direitos dó oposição que continuamos a reivindicar, a participar no diálogo necessário para a sobrevivência e consolidação da democracia.
Mas o Governo e as restantes forças políticas têm de compreender com rapidez uma política que, definitivamente, conduza ao desbloqueamento, psicológico das tensões que se estão a acumular em torno da nossa vida colectiva. Não basta que o Conselho da Revolução se preocupe com a especulação em torno da alta. do custo de vida. Essa especulação só pode cessar se ao aumento do custo de vida forem dadas as respostas económicas, políticas e psicológicas necessárias.
Os aspectos psicológicos e sociais do actual processo político não podem, na verdade, ser menosprezados. E isso leva-nos a considerar uma outra importante dimensão. Na verdade, mais do que nunca interessa sublinhar o papel fundamental que cabe ao quarto poder do Estado, a esse poder inorgânico que é constituído pelos órgãos de comunicação social.
Nesta Assembleia, em múltiplas ocasiões, se ouviram ataques muito firmes - e em vários casos justos - sobre certos órgãos de informação. Hoje, cabe elogiar tantos jornalistas portugueses que, apesar de tudo, souberam demonstrar que são bem capazes de fazer jornalismo independente e que, dia a dia, o estão provando pelo seu trabalho e pelo seu comportamento.
Trabalho que muitos deles continuam a exercer em órgãos ditos estatizados. Pessoalmente devo dizer que tenho as mais sérias reservas sobre o princípio da existência de jornais dependentes do Governo. Julgo que haveria soluções capazes de melhor salvaguardar a independência das redacções jornalísticas e o próprio erário público do que aquela que foi adoptada. Ficará para outra altura o desenvolvimento desta tese. Para já, interessa sublinhar a enorme importância dos jornais e, em geral, dos meios de comunicação na consolidação dos espaços de liberdade que uma respiração saudável do espírito democrático do País inequivocamente exige. A sua serenidade, a sua competência, a sua inteligência, a sua objectividade, a sua recusa ao ódio e à intolerância, são factores fundamentais para o reencontro das condições que permitam a sobrevivência da democracia.
A televisão, de modo particular, tem de contribuir para este esforço. Nela convergem as maiores potencialidades de concurso para o desbloqueamento psicológico das actuais tensões sócio-políticas. A televisão deverá ser o espelho da realidade social: e se o conseguir, terá contribuído, da forma mais útil, para que o País não caia na desilusão ou na convicção de que está a ser enganado ou de que não há alternativa democrática possível. A televisão tem de ser um espaço de encontro e de confronto. Os principais dirigentes políticos têm de apresentar-se, em debate directo, perante o público, analisando a situação do Pais, confrontando as soluções, discutindo as suas perspectivas mútuas.
Sr. Presidente, Srs. Deputados: Concluo: na política económica, na clarividência dos partidos políticos mais responsáveis, na prática do sistema de informação, joga-se o futuro de Portugal.
Comecei por dizer que iniciávamos este ano com perspectivas sombrias. Julgo, porém, que a nossa esperança na democracia, na reconstrução e na reconciliação, tem sérias razões para sobreviver.
Acredito na capacidade do povo português para construir em Portugal a democracia.
Apesar de tudo e contra muitos.
Muito obrigado.
Adelino Amaro da Costa, CDS na Oposição, Lisboa, CDS, 1976
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