24 janeiro 2005

Eu, Tenho Uma Filha - Por Graça Franco, Público - 24.01.05

Há erros que se pagam caro. Louçã cometeu um deles ao retirar a Paulo Portas o direito a defender a vida com o peregriníssimo argumento de não ser "pai". Com isso acabou por passar, a si próprio, um atestado de incompetência política em matéria de aborto. Perdeu de uma penada a bandeira que lhe tem garantido uma espécie de seguro de vida política contra todos os desvarios populisto-demagógicos em que o seu discurso é fértil. Esperemos que, pelo menos agora, não desperdice a ocasião de ficar calado.

Eu, ao contrário do Dr. Portas, ganhei aos olhos do Bloco, uma legitimidade acrescida para falar sobre o tema. Jamais a reclamaria! Considero a Vida um direito universal e, por isso mesmo, tudo menos um tema acantonado e exclusivo de uns poucos. Menos ainda daquele micro-reduto que se considera dona e senhora da vida de outros, só porque lhes dá abrigo nas respectivas barrigas. Confesso que embora a minha lógica de argumentação sempre tenha sido outra, não resisto a aproveitar esta legitimidade reforçada concedida ao meu discurso "conservador", oferecida de bandeja pela argumentação bloquista. Desculpem o oportunismo.

Começo, já neste texto, partindo de um facto que eu própria jamais imaginaria relevante para o debate. Verdade, verdadinha, eu, tal como o líder do Bloco, tenho uma filha. Foi à quarta tentativa, mas lá consegui! Tenho aliás a somar a essa filha quatro filhos. Ora, o Dr. Louçã mesmo querendo recuperar a desvantagem já não vai a tempo para as próximas eleições. Nem sequer para o próximo referendo, prometido pelo PS e que o PSD correu a anunciar que viabilizará! É assim certo que, quando se voltar a referendar esta questão, vou partir em vantagem de 5 a 1 para o debate na lógica Louçã!

Acresce que, em matéria de crianças e tal como o líder bloquista, sempre fui capaz de "apreciar" o seu sorriso mesmo muito antes de ser mãe. O mesmo não diria da capacidade, mais recente, de também lhes apreciar o choro. Aí, admito que a maternidade e a paternidade ajudam a criar uma estética nova. Pelo menos a avaliar pela irritação dos "não pais" perante cenas de gritaria que deixam a generalidade dos progenitores relativamente indiferentes. Adiante...

Sei também o que é suportar os nove meses de gravidez e passar por aquela experiência dos respectivos partos. Não faço parte das mães que tem sobre esse momento discursos idílicos. Acho-os genericamente para esquecer. A fantástica epidural no da minha filha foi a excepção que aponta para uma hipótese, em cinco, do relato livresco se confirmar!...

Chegados aqui, e como o Dr. Louçã obviamente nunca deu à luz... estamos no ponto em que o líder bloquista já só terá superioridade moral no debate económico (em que é professor e eu mera licenciada...). Em matéria de aborto, passarei, a partir daqui, a debater com as suas deputadas desde que munidas dos respectivos curricula maternais.

Para cúmulo e infelicidade minha, em vez de cinco poderia ter sete filhos, não fora ter perdido dois entre as 12 e as 16 semanas de gestação. Sei da dor física e moral dessa perda. Em rigor, nesta matéria, só desconheço a experiência do aborto provocado, mas imagino que essa não me seja exigida pela moral bloquista uma vez que eu sou claramente contra a sua liberalização.

Aliás, para evitar equívocos, vale a pena referir que o novo referendo já não se vai centrar nos habituais casos dramáticos e de dolorosa discussão para os dois lados em confronto. Violações, mal formações do feto e risco grave para a saúde física e até psíquica da mãe. São tudo casos já contemplados na lei actual. Do que se trata agora é, tão só, de debater a magna questão de saber se "ao crime" corresponde sempre "uma pena", e qual?

Em rigor, esta polémica forçada em torno das penas só serve para escamotear o verdadeiro objectivo da revisão da lei que é, assumidamente, o de facilitar o chamado "aborto porque sim" - afectando a essa política os correspondentes dinheiros públicos e limitando o direito dos médicos a fazer a objecção de consciência legitimada pelo próprio juramento de Hipócrates. Trata-se, portanto, de alinhar com a argumentação egoísta das meninas de barriguinha à mostra a clamar que ali "mandam elas!".

Não sei como o coração de pai do Dr. Louçã se sente quando vê as suas companheiras de causa a colocá-lo à parte da questão dos limites de soberania sobre as respectivas barrigas. Eu sou completamente contra esse coro folclórico de um feminismo retardado, apostado na total desresponsabilização dos machos envolvidos na progenitura.

Na barriga, que acolhe um filho, não manda apenas a mãe, nem sequer a mãe e o pai! Os filhos não "são coisas" e, menos ainda, exclusivamente nossas. Têm eles próprios os seus direitos. O direito à vida é o mais básico e o primeiro de entre eles. Por mais incómodos que esse direito nos venha causar às nossas barriguinhas de aluguer.

Pior, acho absolutamente lamentável, e mesmo muito pouco sério, que se conquiste a ribalta do espaço público para perder tempo e desperdiçar energias com falsos dramas (porque os reais bem ou mal já tem ampla cobertura na actual lei). Na crise que vivemos, é sim crime não concentrar todos os esforços em combater as questões que estão na raiz dos verdadeiros problemas nacionais e que, infelizmente, continuam na base do sofrimento de muitas das mulheres incapazes de encontrarem alternativas a abortar. Opção muitas vezes forçada por uma série de condicionalismos de que acabam por ser vítimas. Combatê-los podia ser útil, positivo e mobilizador. A começar na luta contra a nova tortura e velha violência doméstica, contra a desresponsabilização dos respectivos parceiros no planeamento familiar, contra a pobreza gritante, o desemprego indesejado, e a falta de informação sobre a prevenção de uma gravidez indesejável, acabando na luta contra os preconceitos sociais legitimados por "receios" e "estigmas" profundamente hipócritas. Não se pode liberalizar ainda mais o aborto só porque alguém nos diz que se a criança nascer "a mãe vai morrer de vergonha, o pai vai morrer de desgosto, ou a própria morre de medo que o namorado a abandone!".

Até porque o aborto mesmo sem culpa deixa marcas. Eu ainda me lembro das primeiras roupas de grávida compradas no exacto dia em que houve uma explosão num paiol de Lisboa. Sempre achei que foram afinal duas as mortes daquela explosão (o único operário atingido e aquele bebé que eu esperava...). Tudo corria bem até aquele momento em que a cobertura do acidente fez subir o nível do stress e alguma coisa começou a correr mal. Deixei a redacção. O médico no Hospital confirmou. Estava morto. Eu tinha-lhe dito a minha idade de alto risco e que era o quinto. Acho que ele considerava que a morte era, nesse caso, um motivo de alívio. Chorei. Ele consolou-me, condescendente: percebo! Era o primeiro de uma nova relação?

Não. Era o quinto da mesma. Na óptica da elite bloquista isto deve atestar uma notável veia conservadora na minha vida privada (!)...logo reforçar a minha legitimidade argumentativa.

Confirmo que na extrema-esquerda há vícios que não morrem. Há vinte anos uma amiga minha deixou o namorado porque ele frequentava "meios burgueses" e o partido não admitia esses modernismos. Era um partido que fazia do tema do aborto uma das suas bandeiras. "Façam amor!"... Lembram-se? Parente próximo dos velhos pais ideológicos do jovem e progressíssimo Bloco... O gato escondido... deixou-se apanhar no debate Portas-Louçã de " rabo de fora".

Para o substituir na defesa da vida, nos debates com o bloco, pode o Dr. Paulo Portas contar sempre que queira com a minha ajuda. Neste ponto, duvido que alguma das jovens deputadas bloquistas exiba um currículo de legitimação sobre a matéria que bata o meu. Pelo menos, nesta nova óptica de análise ultra-reaccionária do moderníssimo bloco e dos seus líderes.

(Jornalista)